Mesmo dirigindo em baixa velocidade, a estrada de terra levantava um véu de poeira que inevitavelmente era visto pelo retrovisor do carro. O mesmo chão denunciava os raros veículos que se aproximam, até os que estavam a centenas de metros de distância.
Encontrava-me em Twyfelfontein, região de Kunene, na Namíbia, sul da África. O destino era Skeleton Coast Park, um isolado parque nacional do país africano. Tinha pela frente um caminho de aproximadamente 350 quilômetros feito em meio às montanhas e deserto, cujo desfecho aconteceria no mar, à margem do Oceano Atlântico.
O trajeto era demarcado pelo solo batido. Às vezes, algumas placas apareciam para dar confiança na jornada. A planície vasta e aberta sumia no horizonte. Não havia sinal de árvores e nem de arbustos – muito menos de celular –, existia somente poucos pontos de capim baixo. Montanhas com gigantes platôs ajudavam a formar o plano de fundo daquela paisagem inspiradora e selvagem.
Dividia a viagem com Rafael Leick, publicitário e blogueiro do Viaja Bi, meu amigo de longa data. Um encorajava o outro a percorrer caminhos ainda mais distantes. Enquanto um dirigia, o outro traçava rotas, conferia o trajeto e fazia o serviço pesado: escolhia o sabor do salgadinho, anotava dados importantes e limpava as lentes das câmeras. Tínhamos um mapa impresso e um GPS, itens necessários para encarar a Namíbia de maneira autônoma.
“Aqui, vocês vão ter que andar muito para encontrar alguma coisa, mas com esse mapa vão conseguir se localizar. Todas as rotas da Namíbia estão aí”, garantiu, dias antes, uma vendedora de uma lojinha de souvenirs de um dos vilarejos que cruzamos. Porém, não era mapa qualquer, tratava-se de um legítimo e imprescindível guia rodoviário do país. Para se ter ideia, as estradas da Namíbia são classificadas por letras, mais especificamente por A, B, C e D. As duas primeiras são as major roads, consideradas as rodovias principais, as quais possuem asfaltos de boa qualidade. Entretanto, as que recebem a classificação C, denominada de minor road, são estradas de cascalho ou terra. As que recebem a categoria D, chamadas de district road, são rotas de terra e barro, caminhos inviáveis em períodos chuvosos. Estávamos em fevereiro, em pleno verão e na época das chuvas.
O caminho para Skeleton Coast Park, cuja tradução se dá como “Costa dos Esqueletos”, é uma estrada de classificação C, ou seja, estrada de terra e cascalho, um trajeto que não era tão rápido de ser feito, o que fazia a viagem ser ainda mais contemplativa, regada de boas conversas, música e, muitas vezes, de silêncio.
Sentia-me completo naquele lugar, a ponto de não querer chegar no destino. O motivo é que sou fascinado por locais distantes. Gosto do inóspito e do medo que ele me causa. Acho excitante estar por conta própria num local que tem tudo para acabar comigo. Dava-me prazer sentir a dependência que eu possuía do ronco do motor, da gasolina e dos litros de água que carregava no porta-malas do veículo. Sabia também que aquela autossuficiência era uma ilusão criada por mim. Porém, sentia-me preparado porque havia tudo o que precisava: comida para muitos dias, barracas, fogareiro e remédios. Estava tranquilo.
Meu mochilão, que em outras viagens era minha principal companhia, naquele momento encontrava-se repousado no banco traseiro do Toyota Suv 4×2. Aquela era minha primeira vivência em uma road trip, mesmo assim era uma experiência libertadora, ainda que encapsulado em um metal de quatro rodas.
Não havia nada ao meu redor, mas o nada era tudo. Era tudo que eu queria ver e estar por perto. A estrada que percorria era um sonho realizado, porque a África sempre chamou a minha atenção, muito mais que qualquer outro continente. Mas quando falo África, digo mesmo aspecto isolado e primitivo, não pelas cidades. A paisagem que eu enxergava fazia desaparecer o tanto tempo que esperei; a cena inóspita me inspirava; o retrato do mundo primitivo estava à minha frente. E, naquele momento, sentia-me parte daquilo tudo. Estava na África selvagem, finalmente.
Encontrava-me cercado por países desconhecidos e instigantes: ao norte, Angola e Congo; a nordeste, Zâmbia; a leste, Botsuana e Zimbábue, e ao sul, a África do Sul. Não tinha tempo e dinheiro suficientes para percorrer outros caminhos, mas firmava constantemente o compromisso de voltar à Africa para conhecer esses países mencionados. “Cara, a África é foda, olha isso!”, dizia Leick constantemente. Eu concordava.
O relógio apontava 11h45. A brisa era fraca, mas suficiente para me fazer fechar os olhos e me despertar para diferentes sensações. O sol já se fazia escaldante, mas não me limitava a fazer pequenas explorações fora do veículo. O ar quente enchia meus pulmões e me trazia ansiedade, um sentimento que poucas vezes senti durante uma viagem. O silêncio absoluto me instigava. O barulho do cascalho sendo esmagado pela minha bota era o único som que eu fazia questão de escutar. Sentia ecoar somente a minha voz, dentro de mim. Sentia também a serenidade e a paz que poucas vezes senti.
A sensação era tão forte que fazia questão de deixar o carro desligado. Não precisava parar em nenhum acostamento. Estacionava no meio da estradinha de terra vermelha. Num trecho que talvez ninguém tenha passado por aquele lugar durante todo o dia.
Volto para o carro e dirijo. O destino é apenas um: Skeleton Coast Park. Um lugar que fica exatamente à frente do horizonte das praias paulistas, mas do outro lado do Atlântico. Uma distância de 6 mil quilômetros do Brasil, cujo trajeto foi feito por Amyr Klink numa travessia solitária a remo, minuciosamente narrada no livro “Cem dias entre céu e mar” (1995).
Mesmo sem a destreza, a coragem e o protagonismo de Klink, eu navegava pelo meu próprio mar desconhecido, que se traduzia nas estradas onduladas da Namíbia e com direção à Costa dos Esqueletos. Eram caminhos que não permitiam “sentar o pé”, como costumamos dizer. Sendo assim, o jeito era andar a 60 km/h, velocidade ideal para contemplar paisagem e conversar despreocupadamente. Sem hora pra chegar, a única preocupação era curtir cada minuto daquele trecho da viagem.
“Cara, o que é aquilo lá na frente?”, perguntou Rafael Leick com uma fala espantada. “Parece uma pedra muito louca”, respondi. “Não, velho. O negócio está se mexendo”, retrucou Leick. Ao chegarmos mais próximos, notamos oito girafas no alto do um pequeno morro. Cena espetacular, digna de puxar novamente o freio de mão. Ficamos aproximadamente 15 minutos contemplando os enormes bichos, até o momento em que eles decidiram sumir. Seguimos de um lado; eles do outro.
Duas grandes caveiras apareceram em nosso caminho. Era o portão de entrada do Skeleton Coast Park. Além da grande e inusitada barreira, um muro de dois metros de altura formado de pedras sortidas impediam a visão para o interior do parque. Descemos do carro para pegar informações.
“Hi, guys. How are you?”, perguntou-nos de imediato o guarda-parque assim que aparecemos na porta da pequena recepção. Foi nos solicitado o preenchimento de um pequeno formulário de entrada.
O cômodo era um pequeno escritório, existia somente uma mesinha, duas cadeiras e um armário com algumas pastas. À mesa, papéis soltos e um caderno de assinaturas de entrada. Havia também uma porta entreaberta, provavelmente era o acesso para um banheiro. Pendurado na parede, um quadro com a foto do presidente Hage Geingob. A idolatria à figura do político está presente em quase todos os estabelecimentos da Namíbia (públicos e não públicos). A razão é que somente a partir da década de 1990 que o país passou a ser independente e, desde então, somente três presidentes comandaram o país. Uma constatação de que a Namíbia ainda comemora sua recente autonomia.
O Skeleton Coast Park é um dos grandes parques nacionais da Namíbia. Criado em 1971, possui 40 km de largura por 500 km de comprimento, totalizando uma área de aproximadamente 20.000 km². O nome “Costa dos Esqueletos” surgiu do enorme número de baleias encalhadas na praia, as quais deixaram (e ainda deixam) seus esqueletos à mostra. Fora isso, há inúmeros esqueletos de naufrágios, que encalharam graças à névoa espessa da região, sem falar do mar revolto, das correntes imprevisíveis e dos ventos tempestuosos que assolam o lugar.
Assinamos a ficha de entrada e saímos. “Quer continuar dirigindo?”, perguntou Leick, enquanto caminhamos para o veículo. Falei que ele poderia assumir a partir daquele trecho.
A mudança não foi apenas na direção: as montanhas não mais existiam, a vegetação que já era rara, sumiu. O deserto que antes era de terra vermelha, passou a ser amarelo ouro, com areia fina em vez de terra grossa.
Os raios de sol evidenciavam o dourado daquele chão que me obrigava a descer novamente do carro para poder abraçar aquele lugar. Mas não bastava só descer, nem olhar, muito menos tirar apenas fotos. Era preciso sair daquela lataria que me tornava prisioneiro de novas sensações.
Sentia a necessidade de andar, tomar sol na cabeça e de deixar marcas de bota naquele chão que certamente nunca mais pisaria. Eu sabia que aquela viagem para a Namíbia fazia parte das viagens que só acontecem uma vez na vida, por isso tudo era especial e intenso. A cada minuto acontecia um encontro e uma despedida. E meu peito sorria com a ida, mas chorava com a partida. Ao mesmo tempo. Eu vivia um sentimento inédito.
Apesar da aparência hostil de Skeleton Coast Park, há um grande número de animais selvagens na região. Dentre eles estão os elefantes do deserto, rinocerontes, leões, hienas marrons, chacais, girafas, focas, órix, kudus e zebras. Além disso, há diversas espécies de plantas, as mais comuns são as welwitschias, chamadas de polvo do deserto, nara melon, uma espécie de melão, e as lithops, conhecidas como “pedras vidas”. Porém, mesmo com toda essa diversidade, tanto de animais quanto de plantas, não tive a sorte de notá-las pelo caminho.
Realizava-me a cada passo naquele deserto, parecia que estava em outro planeta, porque jamais imaginei que veria cenas tão raras. As fotografias não conseguiram registrar com exatidão, mas que felizmente foram vividas com intensidade.
Situava-me do lado oposto de onde seria a Serra do Mar no Brasil. Porém, na Namíbia, ao contrário do que tem em nosso país, não há matas, tampouco uma pista como a Imigrantes ou Anchieta. O trajeto até o mar é inóspito, afastado de cidades e comunidades. O trânsito é inexistente, tão improvável quanto uma árvore em meio ao deserto.
Agora, oficialmente em Skeleton Coast Park, a capital Windhoek já estava a mais de 500 quilômetros de distância. O caminho à frente era reto e bucólico. Às vezes era difícil enxergar as margens da estrada, uma vez que elas se misturavam de maneira assustadora com o horizonte. “Bem-vindo ao fim do mundo”, brincou Leick, também extasiado com o que seus olhos estavam vendo.
Depois de algum tempo na estrada: três, talvez quatro horas, no máximo, o chão dourado incorporou tons mais escuros. O sol também já não mais existia, o clima dera a passagem para uma fina névoa. Então, já quase no nível no mar, avistamos uma placa com os dizeres “Old Oil Drill Rig”, cuja tradução livre se dá como “Velho equipamento de perfuração de petróleo”. Decidimos conferir de perto. Em poucos minutos chegamos próximos de um monumento de metal em avançado processo de decomposição, tratava-se da plataforma de perfuração.
Abandonada no final da década de 1960, o empreendimento representou a esperança de dois empreendedores, Ben du Preez e Jack Scott. Eles tinham certeza de que ali havia petróleo, mas quando chegaram a uma profundidade de 1.700 metros, perceberam que não existia nada naquela região. Atualmente, o local serve de plano de fundo para fotos e de ninho para as aves durante a época de reprodução.
A construção enferrujada ajudava a criar um ar fantasmagórico e inóspito ao local, dando-me nova euforia no peito. Não havia sinal de vida, só me restava viver a quietude rara que um local igualmente incomum poderia proporcionar. Tudo era tão silencioso que até o barulho da respiração quebrava a calmaria. Tal serenidade é a essência de Skeleton Coast Park.
Dirigir por horas diante uma folha dourada de areia culminou na chegada ao mar. Do alto de uma duna, tive o contato visual com a costa namibiana. Enfim, estava do outro lado do Atlântico. De cara, confirmei a razão de se chamar “Costa dos Esqueletos”: vi inúmeros destroços de navios repousados na areia, todos fadados ao apodrecimento lento e silencioso reduzidos à poeira do deserto de ouro. Praia vazia, tempo cinza, silêncio. Eu só queria ouvir o quebrar das ondas.
Passei alguns minutos pensando na imensa distância que estava do Brasil. Recordei-me de uma vez que estava na Praia Grande, litoral de São Paulo, em que meu pai me dissera: “Se você for reto aqui, vai dar lá na África”. Eu era muito menino, mas nunca me esqueci daquelas palavras. E, naquele momento, eu estava do outro lado. Feliz por estar do outro lado. E lembrando daquela explicação. Imaginava também que perto dali existiam outros naufrágios sendo impedidos de serem vistos pela neblina, assim como carcaças de baleias e outros animais marinhos.
A brisa mordaz me causava respeito. Não havia outro lugar em que eu gostaria de estar: beijado pela névoa, sobre um inóspito deserto de ouro e deslumbrado com um mar impiedoso, já me sentia entregue a Deus.
Skeleton Coast Park (Costa dos Esqueletos)
A melhor época
Para conhecer Skeleton Coast Park, o ideal é ir nos meses de seca na Namíbia, cujo período é marcado pelas temperaturas mais tranquilas. Sendo assim, o melhor período é entre maio e outubro. O auge da alta temporada acontece nos meses de julho e agosto, considerado o inverno do país africano.
A época menos disputada acontece entre novembro e abril, a estação das chuvas. Além do período chuvoso, a alta na temperatura também acontece durante esses meses, quando os termômetros chegam a marcar 40°C.
Como chegar a Skeleton Coast Park
Há duas maneiras de chegar se chegar a Skeleton Coast Park. A primeira é através de agências de turismo, usualmente contratadas em Windhouk, capital da Namíbia. A outra é por meio de aluguel de veículo, sendo esta uma alternativa para fazer uma viagem mais independente.
O aeroporto utilizado é Internacional de Hosea Kutako (WDH), marcado como o ponto de entrada da Namíbia. Está localizado a apenas 40 km de Windhoek. Sendo assim, uma alternativa é organizar uma viagem que atinja diferentes destinos, não apenas a Costa dos Esqueletos.
Skeleton Coast Park está localizado a 500 quilômetros da capital e a 620 quil6ometros do Etosha National Park.
O que você precisa saber
- O itinerário mais comum é a partir de São Paulo (GRU) com chegada em Windhoek (WDH);
- Caso prefira alugar carro, é ideal que a viagem aconteça com duas pessoas ou mais;
- Aluguel de carro não é barato, o custo de um 4×2 pode chegar a R$ 3.800,00 por semana;
- Veículos 4×2 ou 4×4 são sempre as melhores opções;
- Aceita-se a CNH brasileiro (não precisa emitir a internacional);
- É aconselhável (necessário) alugar carro com antecedência (e reservar com as agências também);
- Agências de viagem são mais caras;
- Para uma viagem econômica, pode-se optar por camping (necessário levar barraca);
- O mapa rodoviário da Namíbia pode ser comprado no aeroporto (sugiro que faça isso);
- O dinheiro deve ser trocado imediatamente na chegada, também localizado dentro do aeroporto;
- Cartões de crédito são utilizados facilmente dentro da Namíbia;
- Não é aconselhável dirigir à noite (alguns campings não deixam entrar após às 22h);
- O acesso ao Skeleton Coast Park é gratuito;
- Chips de celular podem ser comprados na capital;
- Para entrar na Namíbia não é necessário visto;
- Vacina contra a Febre Amarela é obrigatória.
Que felicidade poder recordar essa viagem, ou melhor, essa experiência de vida pelos teus olhos, Rafa. Foi sensacional!
Da próxima vez, eu levo melhores músicas e você escolhe melhor os salgadinhos. 😉
Não vejo a hora.
Abraços.
[…] Swakopmund depois de passar por Twyfelfontein e Skeleton Coast. A cidade, cuja população é de 44 mil habitantes, é considerada a principal praia do país. O […]
[…] Skeleton Coast e a jornada pelo deserto de ouro da Namíbia […]
Rafael, onde você ficou hospedado aqui na Skeleton Coast?
Não fiquei hospedado lá, segui viagem para Swakopmund.
[…] Skeleton Coast e a jornada pelo deserto de ouro da Namíbia […]
[…] Skeleton Coast Park e a jornada pelo deserto de ouro da Namíbia – SM […]